2009/03/30

Divagações

Às vezes quando olho para o espelho, procuro uma cara conhecida. Porque nos olhos que vejo reflectidos no espelho, por detrás deles vejo uma criança. Tenho já 27, caminhando para os 28. E não obstante os cabelos brancos que já vão povoando a cabeleira que se vai fazendo esparsa, e as linhas que, mais que o tempo, as alegrias e as tristezas vão esculpindo no meu rosto, é uma criança que vejo a retribuir o olhar do outro lado o espelho. Essa criança ainda olha para o mundo à sua volta e tenta contrariar o cínico que convive com ela. Essa criança ainda consegue encontrar alegria e maravilhar-se em coisas sem sentido: ver um céu azul com as nuvens flutuando lentamente; com o vento a bater-lhe na cara; com o cantar dos pássaros; com a natureza em flor... Ainda acha que ouvir/ler uma boa história é das coisas mais maravilhosas que pode existir. Ainda considera que uma tarde de não fazer nada de jeito com um amigo é uma tarde bem gasta. Acredita que estar com alguém em silêncio, sem que ele seja incómodo, é um sinal de entendimento. Acredita que os amigos são família.

Essa criança olha para o mundo à sua volta e pergunta-se porque continua tão infantíl, porque continua a sonhar. Vê os seus amigos, cada qual com as suas vidas, com os seus trabalhos e suas preocupações, com as suas responsabilidades, e questiona-se quando irá amadurecer. Os anos foram-se passando, mas a criança não cresceu, e sente-se tão pequena e ignorante como quando tinha 5 anos. O mundo continua-lhe a parecer tão grande, e ao mesmo tempo tão pequeno.

Mas, contudo, é essa criança que volta e meio vislumbro que me leva até à fonte donde brota a esperança nos dias mais difíceis. Porque apesar das sua insignificânica, da sua pequenêz, ela ainda crê em histórias de encantar. E de todas as histórias de encantar em que crê, aquela em que mais crê é a mais fantástica de todas. E porque é a mais fantástica e impossível de todas, é a mais real, a mais verdadeira. Quando o cínico e o racionalista já nada podem e desistem, a criança continua firme porque acredita no aparentemente absurdo, no aparentemente paradoxal: que Deus tanto amou o Homem que por ele incarnou e por ele deu a sua vida.

2009/03/26

Hoje aconteceu o inesperado. Hoje veio um pouco da consolação para animar uma alma que tem andado um pouco sem jeito. Tocou o meu telemóvel. Era número anónimo. Atendi, e quanto não é o meu espanto quando do outro lado da linha ouço uma voz familiar e amistosa, uma voz que julgava que nunca mais iria ouvir! Era o meu antigo colega de trabalho, o Alex, a ligar do outro lado do oceano para saber como eu estava. Trouxe logo um sorriso à minha cara e o resto do dia já foi vivido de outra forma. Obrigado Senhor.

2009/03/25

A Anunciação


Hoje celebra-se a Anunciação do anjo Gabriel a Maria. Hoje celebra-se o "Sim" mais importante na história do Homem, que continua a ter repercuções ainda hoje. Hoje celebra-se o "Sim" à Vida. Deus podia ter arranjado outra maneira do Salvador vir ao mundo, mas o facto é que a Providência quis que Ele viesse pela Santíssima Virgem Maria. Obrigado Mãe! Obrigado pelo teu "sim" e pelo teu filho! Ave Maria!
Mas Cristo também quer se fazer presente no mundo através de nós. Saibámos imitar a Maria, para que o Espírito Santo encontre em nós também um terreno fecundo.




2009/03/24

Cansaço

Sinto-me cansado hoje. É um cansaço que já se vem acumulando há alguns dias. É um cansaço que levo comigo para a oração e que ponho diante do Senhor. É um cansaço que aceito como sacrifício. E a que se deve? Há várias coisas que contribuem para este cansaço, dos quais partilharei apenas dois, que penso serem os mais relevantes neste momento.

Um dos motívos é os meios de comunicação nestes últimos tempos, nomeadamente no que diz respeito ao nosso querido Papa. Parece que abriu a época de caça, e estão todos a mandar o seu tiro ou a sua farpa, critcando, menosprezando, obfuscando, etc. Quando são não-crentes, ainda consigo engolir mais ou menos, mas agora quando também vêm de dentro da própria Igreja, do próprio corpo místico de Cristo, custa a aceitar. Ouvem-se coisas como "ele é uma vergonha para a nossa Igreja" ou "é dos piores Papas de sempre" ou ainda "mais valia estar calado". E um dos argumentos mais comuns contra as posições tomadas pela SS Bento XVI é de que "a Igreja precisa de se modernizar/actualizar porque a maioria dos Católicos já não vê as coisas dessa maneira". Argumentos ad populum, da última vez que vi, não são argumentos válidos. Será então que os Arianos tinham razão e que afinal Sto. Atanásio era um louco? São Jerónimo fez o seguinte comentário sobre esse período da Igreja: "O mundo acordou um dia e descobriu-se ariano." Será que por a maior parte da Igreja ter começado a acreditar que Jesus era apenas um homem (embora o homem mais próximo de Deus), Cristo deixou de ser "verdadeiro Deus e verdadeiro Homem" e que, como eram a maioria, que eles é que estavam certos?
Não é ira nem amargura que me surge ao ler sobre estes ataques, mas sim tristeza e pesar de ver um corpo dividido, em que os membros se tentam "morder e devorar". Esse p esar provoca cansaço, e esse cansaço só vai encontrando algum alívio na oração, pedindo unidade e caridade para todos os membros.

Outra das coisas que me tem criado algum cansaço é ser acusado de ser algo que não sou. Acusam-me de ser "antiquado", "elitista", "retrograda", "reacçionário", e outras coisas a fins. E tudo isto a propósito de quê? Da Liturgia, imagine-se... Enquanto estive fora tive oportunidade de assistir umas quantas vezes à Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano. Tinha ido inicialmente por curiosidade, para ter uma ideia do que era. Mas o que acabei por encontrar foi uma forma mais profunda (pelo menos para mim) de viver a Eucaristia. É um rito carregadíssimo de simbolismo, e que me deixou com uma sensação de pequenez. Saí, das várias vezes que fui assisitir, a sentir-me realmente muito pequeno. E não digo sentir pequeno em sentido negativo, mas em sentido positivo, de me sentir pequeno diante da magnificiência de Deus, de me sentir humilde e muito grato por tudo quanto tenho. Nunca tinha sentido isso em nenhuma missa na Forma Ordinária do Rito Romano. E depois tive a oportunidade de assistir a uma missa cantata na Forma Ordinária, e mais umas quantas missas "normais" na Forma Ordinária na mesma igreja. E a sensação com que fiquei foi a mesma - de pequenez. E por mais simples que estas missais normais podessem ser, pareciam diferentes de todas as missas na Forma Ordinária a que tenho assistido. Não estou a sugerir que as outras tenham sido missas inválidas, mas apenas que não senti o mesmo que naquela igreja. Fiquei com ideia de que era assim que se pretendia que a missa de Paulo VI fosse celebrada. Sei que a Forma Ordinária (ou Novus Ordo, conforme lhe queiram chamar) tem como intenção aproximar-nos mais da missa conforme celebrada pelos primeiros Cristãos. E, de facto, com o que tenho lido sobre as liturgias dos primórdios da Igreja, a Novus Ordo é bastante semelhante. Mas aquelas missas "normais" a que assisti naquela igreja também transmitiam uma continuidade com as outras formas (leia-se ritos) romanas que vieram após os tempos primordiais da Igreja; as outras a que tenho assistido não me têm transmitido essa sensação de continuidade.
Pois bem, certeris paribus, eu não tenho preferência entre os dois ritos. Acho que ambos, quando realizados com reverência, conseguem-nos transportar para além de nós mesmos e deixam-nos vislumbrar um pouco do transcendente. Mas, dado a maneira como são muitas das missas Novus Ordo a que assisto, se tiver de escolher entre uma das duas formas, escolherei a forma Extraordinária. E foi esta a opinião que apresentei a algumas pessoas enquanto tentava descobrir onde poderia assistir a uma missa Tridentina legtima (sempre há a FSSPX, mas enquanto a situação deles não estiver resolvida, não são uma opção) em Portugal. Ora, isso aliado a um certo carinho por algumas manifestações mais "antigas" da fé, foi o suficiente para eu ser visto como uma persona non grata, como sendo anacrónico, e sem lugar na Igreja dos dias de hoje. Ainda levei por tabela a acusação de que não aceito o CV2 (acusação mais que falsa pois aceito a validade de todos os concílios desde os primórdios até hoje)! Não entendo o motivo de tal hostilidade. Causa-me um bocado de espécie estas pessoas que acusam os outros de não estarem em sintonia com a Igreja porque não concordam com a sua interpretação pessoal do CV2. Quase que parece que crêem que o CV2 é um super-dogma, e que tudo o que veio antes não conta, que se rompeu com o passado. Parece-me que não têm uma imagem holística da Igreja. E estas acusações, aliadas ao facto de eu não encontrar ninguém nas redondezas que partilhe da mesma opinião, ferem e desgastam e isso por sua vez também causa cansaço. O único lugar onde este cansaço se vai aliviando é na oração e na Eucaristia.

2009/03/20

"Ego te absolvo"

Fui hoje receber o Sacramento da Reconciliação, vulgo Confissão. Já não não o fazia há 3 meses. Andava só a adiar, a inventar desculpas, a fugir à última da hora, o que só piorou a coisa: com o passar do tempo vai havendo mais para confessar, o que provoca medo/vergonha (no meu caso pelo menos é assim quando passo muito tempo sem ir), então adia-se mais um pouco, o que dá mais tempo para ir acrescentando mais pecados... Já se está a ver onde isto vai dar, não? E depois, como se não fosse só isso, a dor e o pesar de ir à missa e não poder receber comunhão também já se faziam sentir bastante. Então hoje lá fui decidido a fazê-lo. Depois de um bocado de Adoração depois de sair do trabalho lá me "aventurei", pedindo também ao São João Vianney que interecedesse por mim junto de Deus, para me dar coragem de forma a que eu não enventasse uma desculpa à última da hora e voltasse a fugir. Como sabe tão bem ouvir as palavras de absolvição no final. Venho-me embora sempre mais alegre, mais cheio de esperança. Deus sabe o que faz, pois para além de recebermos a Sua graça através deste sacramento, também tem uma compontente catartíca. Como estámos na Quaresma, época de penitência por excelência, acho que há que aproveitar ao máximo este maravilhoso sacramento que o Senhor nos deu.
Só como curiosidade, parece que os nossos irmãos de ritos Orientais se confessam virados para um iconostasis, estando o padre de lado. A ideia por detras deste rito é que um está-se a confessar a Deus estando virado para o iconostasis e que o padre serve de testemunha ao facto (dando a absolvição no final).

2009/03/19

Há dias em que o silêncio é bem vindo. O mundo que me rodeia parece fazer demasiado barulho. Todos são opinados e querem ter o seu dizer acerca do que não lhes diz respeito. Questionam e ridicularizam opções de vida de quem quer seguir os ensinamentos do Senhor, mesmo que ainda esteja no mundo. Fala-se de respeito, mas desde que só seja em relação a nós; respeitar os outros, isso já é outra questão...
Quando foi que a vida Cristã passou a ser algo merecedora de ridicularização?

Rito Bracarense utilizado fora das fronteiras Portuguesas

Parece que uma paróquia nos EUA vai ter direito, no Domingo de Ramos, a usar o rito Bracarense. Espero que aproveitem. Já agora, eu também gostaria de poder viver esse rito, tão particular a Portugal.

2009/03/13

Carta do Papa Bento XVI aos bispos da Igreja Católica

Amados Irmãos no ministério episcopal!
A remissão da excomunhão aos quatro Bispos, consagrados no ano de 1988 pelo Arcebispo Lefebvre sem mandato da Santa Sé, por variadas razões suscitou, dentro e fora da Igreja Católica, uma discussão de tal veemência como desde há muito tempo não se tinha experiência. Muitos Bispos sentiram-se perplexos perante um facto que se verificou inesperadamente e era difícil de enquadrar positivamente nas questões e nas tarefas actuais da Igreja. Embora muitos Bispos e fiéis estivessem, em linha de princípio, dispostos a considerar positivamente a decisão do Papa pela reconciliação, contra isso levantava-se a questão acerca da conveniência de semelhante gesto quando comparado com as verdadeiras urgências duma vida de fé no nosso tempo. Ao contrário, alguns grupos acusavam abertamente o Papa de querer voltar atrás, para antes do Concílio: desencadeou-se assim um avalanche de protestos, cujo azedume revelava feridas que remontavam mais além do momento. Por isso senti-me impelido a dirigir-vos, amados Irmãos, uma palavra esclarecedora, que pretende ajudar a compreender as intenções que me guiaram a mim e aos órgãos competentes da Santa Sé ao dar este passo. Espero deste modo contribuir para a paz na Igreja.
Uma contrariedade que eu não podia prever foi o facto de o caso Williamson se ter sobreposto à remissão da excomunhão. O gesto discreto de misericórdia para com quatro Bispos, ordenados válida mas não legitimamente, de improviso apareceu como algo completamente diverso: como um desmentido da reconciliação entre cristãos e judeus e, consequentemente, como a revogação de quanto, nesta matéria, o Concílio tinha deixado claro para o caminho da Igreja. E assim o convite à reconciliação com um grupo eclesial implicado num processo de separação transformou-se no seu contrário: uma aparente inversão de marcha relativamente a todos os passos de reconciliação entre cristãos e judeus feitos a partir do Concílio – passos esses cuja adopção e promoção tinham sido, desde o início, um objectivo do meu trabalho teológico pessoal. O facto de que esta sobreposição de dois processos contrapostos se tenha verificado e que durante algum tempo tenha perturbado a paz entre cristãos e judeus e mesmo a paz no seio da Igreja, posso apenas deplorá-lo profundamente. Disseram-me que o acompanhar com atenção as notícias ao nosso alcance na internet teria permitido chegar tempestivamente ao conhecimento do problema. Fica-me a lição de que, para o futuro, na Santa Sé deveremos prestar mais atenção a esta fonte de notícias. Fiquei triste pelo facto de inclusive católicos, que no fundo poderiam saber melhor como tudo se desenrola, se sentirem no dever de atacar-me e com uma virulência de lança em riste. Por isso mesmo sinto-me ainda mais agradecido aos amigos judeus que ajudaram a eliminar prontamente o equívoco e a restabelecer aquela atmosfera de amizade e confiança que, durante todo o período do meu pontificado – tal como no tempo do Papa João Paulo II –, existiu e, graças a Deus, continua a existir.
Outro erro, que lamento sinceramente, consiste no facto de não terem sido ilustrados de modo suficientemente claro, no momento da publicação, o alcance e os limites do provimento de 21 de Janeiro de 2009. A excomunhão atinge pessoas, não instituições. Um ordenação episcopal sem o mandato pontifício significa o perigo de um cisma, porque põe em questão a unidade do colégio episcopal com o Papa. Por isso a Igreja tem de reagir com a punição mais severa, a excomunhão, a fim de chamar as pessoas assim punidas ao arrependimento e ao regresso à unidade. Passados vinte anos daquelas ordenações, tal objectivo infelizmente ainda não foi alcançado. A remissão da excomunhão tem em vista a mesma finalidade que pretende a punição: convidar uma vez mais os quatro Bispos ao regresso. Este gesto tornara-se possível depois que os interessados exprimiram o seu reconhecimento, em linha de princípio, do Papa e da sua potestade de Pastor, embora com reservas em matéria de obediência à sua autoridade doutrinal e à do Concílio. E isto traz-me de volta à distinção entre pessoa e instituição. A remissão da excomunhão era um provimento no âmbito da disciplina eclesiástica: as pessoas ficavam libertas do peso de consciência constituído pela punição eclesiástica mais grave. É preciso distinguir este nível disciplinar do âmbito doutrinal. O facto de a Fraternidade São Pio X não possuir uma posição canónica na Igreja não se baseia, ao fim e ao cabo, em razões disciplinares mas doutrinais. Enquanto a Fraternidade não tiver uma posição canónica na Igreja, também os seus ministros não exercem ministérios legítimos na Igreja. Por conseguinte, é necessário distinguir o nível disciplinar, que diz respeito às pessoas enquanto tais, do nível doutrinal em que estão em questão o ministério e a instituição. Especificando uma vez mais: enquanto as questões relativas à doutrina não forem esclarecidas, a Fraternidade não possui qualquer estado canónico na Igreja, e os seus ministros – embora tenham sido libertos da punição eclesiástica – não exercem de modo legítimo qualquer ministério na Igreja.
À luz desta situação, é minha intenção unir, futuramente, a Comissão Pontifícia «Ecclesia Dei» – instituição competente desde 1988 para as comunidades e pessoas que, saídas da Fraternidade São Pio X ou de idênticas agregações, queiram voltar à plena comunhão com o Papa – à Congregação para a Doutrina da Fé. Deste modo torna-se claro que os problemas, que agora se devem tratar, são de natureza essencialmente doutrinal e dizem respeito sobretudo à aceitação do Concílio Vaticano II e do magistério pós-conciliar dos Papas. Os organismos colegiais pelos quais a Congregação estuda as questões que se lhe apresentam (especialmente a habitual reunião dos Cardeais às quartas-feiras e a Plenária anual ou bienal) garantem o envolvimento dos Prefeitos de várias Congregações romanas e dos representantes do episcopado mundial nas decisões a tomar. Não se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962: isto deve ser bem claro para a Fraternidade. Mas, a alguns daqueles que se destacam como grandes defensores do Concílio, deve também ser lembrado que o Vaticano II traz consigo toda a história doutrinal da Igreja. Quem quiser ser obediente ao Concílio, deve aceitar a fé professada no decurso dos séculos e não pode cortar as raízes de que vive a árvore.
Dito isto, espero, amados Irmãos, que tenham ficado claros tanto o significado positivo como os limites do provimento de 21 de Janeiro de 2009. Mas resta a questão: Tal provimento era necessário? Constituía verdadeiramente uma prioridade? Não há porventura coisas muito mais importantes? Certamente existem coisas mais importantes e mais urgentes. Penso ter evidenciado as prioridades do meu Pontificado nos discursos que pronunciei nos seus primórdios. Aquilo que disse então permanece inalteradamente a minha linha orientadora. A primeira prioridade para o Sucessor de Pedro foi fixada pelo Senhor, no Cenáculo, de maneira inequivocável: «Tu (…) confirma os teus irmãos» (Lc 22, 32). O próprio Pedro formulou, de um modo novo, esta prioridade na sua primeira Carta: «Estai sempre prontos a responder (…) a todo aquele que vos perguntar a razão da esperança que está em vós» (1 Ped 3, 15). No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. O verdadeiro problema neste momento da nossa história é que Deus possa desaparecer do horizonte dos homens e que, com o apagar-se da luz vinda de Deus, a humanidade seja surpreendida pela falta de orientação, cujos efeitos destrutivos se manifestam cada vez mais.
Conduzir os homens para Deus, para o Deus que fala na Bíblia: tal é a prioridade suprema e fundamental da Igreja e do Sucessor de Pedro neste tempo. Segue-se daqui, como consequência lógica, que devemos ter a peito a unidade dos crentes. De facto, a sua desunião, a sua contraposição interna põe em dúvida a credibilidade do seu falar de Deus. Por isso, o esforço em prol do testemunho comum de fé dos cristãos – em prol do ecumenismo – está incluído na prioridade suprema. A isto vem juntar-se a necessidade de que todos aqueles que crêem em Deus procurem juntos a paz, tentem aproximar-se uns dos outros a fim de caminharem juntos – embora na diversidade das suas imagens de Deus – para a fonte da Luz: é isto o diálogo inter-religioso. Quem anuncia Deus como Amor levado «até ao extremo» deve dar testemunho do amor: dedicar-se com amor aos doentes, afastar o ódio e a inimizade, tal é a dimensão social da fé cristã, de que falei na Encíclica Deus caritas est.
Em conclusão, se o árduo empenho em prol da fé, da esperança e do amor no mundo constitui neste momento (e, de formas diversas, sempre) a verdadeira prioridade para a Igreja, então fazem parte dele também as pequenas e médias reconciliações. O facto que o gesto submisso duma mão estendida tenha dado origem a um grande rumor, transformando-se precisamente assim no contrário duma reconciliação é um dado que devemos registar. Mas eu pergunto agora: Verdadeiramente era e é errado ir, mesmo neste caso, ao encontro do irmão que «tem alguma coisa contra ti» (cf. Mt 5, 23s) e procurar a reconciliação? Não deve porventura a própria sociedade civil tentar prevenir as radicalizações e reintegrar os seus eventuais aderentes – na medida do possível – nas grandes forças que plasmam a vida social, para evitar a segregação deles com todas as suas consequências? Poderá ser totalmente errado o facto de se empenhar na dissolução de endurecimentos e de restrições, de modo a dar espaço a quanto nisso haja de positivo e de recuperável para o conjunto? Eu mesmo constatei, nos anos posteriores a 1988, como, graças ao seu regresso, se modificara o clima interno de comunidades antes separadas de Roma; como o regresso na grande e ampla Igreja comum fizera de tal modo superar posições unilaterais e abrandar inflexibilidades que depois resultaram forças positivas para o conjunto. Poderá deixar-nos totalmente indiferentes uma comunidade onde se encontram 491 sacerdotes, 215 seminaristas, 6 seminários, 88 escolas, 2 institutos universitários, 117 irmãos, 164 irmãs e milhares de fiéis? Verdadeiramente devemos com toda a tranquilidade deixá-los andar à deriva longe da Igreja? Penso, por exemplo, nos 491 sacerdotes: não podemos conhecer toda a trama das suas motivações; mas penso que não se teriam decidido pelo sacerdócio, se, a par de diversos elementos vesgos e combalidos, não tivesse havido o amor por Cristo e a vontade de anunciá-Lo e, com Ele, o Deus vivo. Poderemos nós simplesmente excluí-los, enquanto representantes de um grupo marginal radical, da busca da reconciliação e da unidade? E depois que será deles?
É certo que, desde há muito tempo e novamente nesta ocasião concreta, ouvimos da boca de representantes daquela comunidade muitas coisas dissonantes: sobranceria e presunção, fixação em pontos unilaterais, etc. Em abono da verdade, devo acrescentar que também recebi uma série de comoventes testemunhos de gratidão, nos quais se vislumbrava uma abertura dos corações. Mas não deveria a grande Igreja permitir-se também de ser generosa, ciente da concepção ampla e fecunda que possui, ciente da promessa que lhe foi feita? Não deveremos nós, como bons educadores, ser capazes também de não reparar em diversas coisas não boas e diligenciar por arrastar para fora de mesquinhices? E não deveremos porventura admitir que, em ambientes da Igreja, também surgiu qualquer dissonância? Às vezes fica-se com a impressão de que a nossa sociedade tenha necessidade pelo menos de um grupo ao qual não conceda qualquer tolerância, contra o qual seja possível tranquilamente arremeter-se com aversão. E se alguém ousa aproximar-se do mesmo – do Papa, neste caso – perde também o direito à tolerância e pode de igual modo ser tratado com aversão sem temor nem decência.
Amados Irmãos, nos dias em que me veio à mente escrever-vos esta carta, deu-se o caso de, no Seminário Romano, ter de interpretar e comentar o texto de Gal 5, 13-15. Notei com surpresa o carácter imediato com que estas frases nos falam do momento actual: «Não abuseis da liberdade como pretexto para viverdes segundo a carne; mas, pela caridade, colocai-vos ao serviço uns dos outros, porque toda a lei se resume nesta palavra: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais mutuamente, tomai cuidado em não vos destruirdes uns aos outros». Sempre tive a propensão de considerar esta frase como um daqueles exageros retóricos que às vezes se encontram em São Paulo. E, sob certos aspectos, pode ser assim. Mas, infelizmente, este «morder e devorar» existe também hoje na Igreja como expressão duma liberdade mal interpretada. Porventura será motivo de surpresa saber que nós também não somos melhores do que os Gálatas? Que pelo menos estamos ameaçados pelas mesmas tentações? Que temos de aprender sempre de novo o recto uso da liberdade? E que devemos aprender sem cessar a prioridade suprema: o amor? No dia em que falei disto no Seminário Maior, celebrava-se em Roma a festa de Nossa Senhora da Confiança. De facto, Maria ensina-nos a confiança. Conduz-nos ao Filho, de Quem todos nós podemos fiar-nos. Ele guiar-nos-á, mesmo em tempos turbulentos. Deste modo quero agradecer de coração aos numerosos Bispos que, neste período, me deram comoventes provas de confiança e afecto, e sobretudo me asseguraram a sua oração. Este agradecimento vale também para todos os fiéis que, neste tempo, testemunharam a sua inalterável fidelidade para com o Sucessor de São Pedro. O Senhor nos proteja a todos nós e nos conduza pelo caminho da paz. Tais são os votos que espontaneamente me brotam do coração neste início da Quaresma, tempo litúrgico particularmente favorável à purificação interior, que nos convida a todos a olhar com renovada esperança para a meta luminosa da Páscoa.
Com uma especial Bênção Apostólica, me confirmo
Vosso no Senhor
BENEDICTUS PP. XVI
Vaticano, 10 de Março de 2009.

(fonte)
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Uma carta muito comovente do nosso Papa. Penso que devemos unir as nossas preces, para que Deus lhe dê as forças necessárias para atravessar este período conturbado que atravessa.

2009/03/10

Lições de humildade

O meu regresso a Portugal tem servido para me dar uma lição de humildade no que diz respeito aos amigos. Digámos que eu tenho uma certa "vaidade" nos meus amigos, i.e., apesar de os amar, acreditava que eu tinha um lugar "central" na vida deles, e que se eu dissesse "venham ter comigo" eles teriam que deixar tudo e vir logo a correr. Mas a verdade é que isso é só na minha cabeça, e que é egoismo da minha parte. Desde que cheguei pouco ou nada tenho visto dos meus amigos. A vida deles continuou desde que me ausentei estes meses e isso é bastante notório agora que regressei. Mas agradeço estes momentos de "solidão" porque servem para me por no lugar, para descobrir os afectos desordenados que tenho, e para me aberceber de que ninguém é indispensável na vida dos outros. Com as horas livres sempre se vai podendo dedicar mais algum tempo à oração e encontrar Aquele que está sempre connosco, e assim se vai lentamente apercebendo que nunca estámos sós...
Houve algo que o padre disse na homilia de Domingo passado que me perturbou um pouco, de tal modo que dois dias depois ainda me está a inquietar. Durante a homilia disse algo para o efeito de que a vida "não é só isto, não é só a Eucaristia, que há mais fora disto." Porque é que me perturbou? Porque a Eucaristia é central na vida de um Cristão: é nela que ele se encontra directa e fisicamente com Deus, e que recebe d'Ele as forças necessárias para esta perigrinação. Como dizia S.to Irineu: "A nossa maneira de pensar concorda com a Eucaristia, e a Eucaristia, por sua vez, confirma a nossa maneira de pensar" (que mais tarde viria a dar o famoso "Lex crendi, lex orandi"). Espero que tenha sido apenas uma ideia mal expressa...